Cambridge (EUA) - Chamar qualquer lugar de cérebro do planeta seria um ato de extremo mau gosto, quando não de profundo exagero. Tratando-se, no entanto, do Massachusets Institute of Tecnology (MIT), estamos bem perto da verdade. O MIT pode não ser o cérebro do mundo, mas pelo menos é o hemisfério esquerdo, onde estão se desenvolvendo as mais vitais atividades lógicas e sensoriais.
Imagine uma cidade muito bem organizada, com seus 10 mil habitantes, prédios de três ou quatro andares, tijolinhos aparentes, janelinhas brancas e decorados por grandes árvores de folhas amareladas pela chegada do outono.
Pelas suas ruas asfaltadas transitam estudantes de mochilas e patins, misturados com alguns representantes de outras gerações, homens de ternos frouxos sobre o corpo, gravatas apertadas nos colarinhos e óculos de lentes grossas. Mas, atenção: eles raramente são os cientistas. No MIT de hoje os verdadeiros cientistas, cheios de Phds, vestem jeans surrados, tênis sujos e usam rabos de cavalo.
Os prédios estão vazios, porque esta segunda-feira (09) é feriado, Dia de Colombo. Mesmo assim, pelos letreiros e placas é possível perceber que dentro deles acontecem coisas. À direita, o departamento de plasma nuclear (parece que a qualquer momento alguém pode sair do prédio com uma bomba atômica debaixo do braço). À esquerda, novos sistemas de raios laser. À frente, astrônomos buscam "o outro lado do universo". Eis o anúncio de uma estranha conferência: X de Raio-X. No edifício de química a novidade é a buckminsterfullerine, uma molécula estável recentemente descoberta, composta de carbono puro.
Ames Street, uma avenida de nome pomposo e tráfego tranquilo, corta o MIT pela metade, em partes simétricas como um campo de futebol.
Aqui um grande conjunto de prédios quebra o estilo arquitetônico mais tradicional do MIT e introduz, de maneira um tanto brusca, domos triangulares de vidros refletivos, janelas fumê, paredes lisas pintadas com faixas coloridas e grandes colunas construídas com o que parece ser concreto armado.
Aimes Street, 20. Media Lab. Ou: Laboratório de Mídia. Ou: o local onde se desenvolvem os mais avançados estudos do mundo sobre informação e meios de informação.
A quebra do estilo arquitetônico agora parece mesmo proposital. Estamos na vanguarda do instituto. Aqui, os cientistas levam a sério a tese de Peter Drucker, guru dos executivos norte-americanos: neste fim de século a informação substituiu o capital - vai progredir no terreno dos big business quem estiver bem informado.
Entrar no Media Lab é como entrar numa grande Gotham City. Na superfície, uma cidade norte-americana tradicional. Mas, embaixo, subsolos lotados de pequenos engenhos por todos os lados. Computadores. Placas. Chips. Luzinhas piscando. Seres estranhos com antenas nos chapéus.
Ali no saguão do edifício E-15, para onde devo me dirigir em obediência às as lacônicas instruções recebidas no Brasil, via Internet, almoçam algumas pessoas sobre mesas toscas de metal. Serão físicos quânticos? Químicos moleculares, talvez? Nada disso. Eles discutem "Os Desafios do Trânsito nos Estados Unidos".
No subsolo, homens de terno e gravata e mulheres de vestidos circulam com estranhas plaquinhas eletrônicas penduradas nos pescoços. Eles se aproximam, encostam suas plaquinhas nas plaquinhas dos outros, algumas luzinhas coloridas acendem-se e ficam piscando, numa série de interações eletrônicas com um inevitável toque sexual.
Pronto, estão apresentados. As plaquinhas, vou ficar sabendo mais tarde, são engenhocas que permitem às pessoas conferirem suas opiniões a respeito de assuntos genéricos. Estão sendo desenvolvidas no Media Lab para aperfeiçoar os tradicionais cartões de visitas. Cada uma delas carregarão eletronicamente informações sobre o seu portador - nome, idade, endereço, telefone, profissão, gostos pessoais, opiniões etc - para serem transmitidas às plaquinhas dos outros. Basta apresentar-se, cumprimentar, aproximar plaquinhas, e depois, ao chegar em casa, conectar ao computador e saber maiores informações sobre quem você conheceu.
O acontecimento-Internet do qual vou participar acontece no próprio subsolo, no The Cube (O Cubo), um enorme salão onde um grupo de voluntários do Media Lab pretende realizar uma experiência pioneira na história do planeta Terra: congregar num só dia, em telas de computador, através da Internet, a maior variedade possível de representantes da Humanidade. Chama-se 24 Horas Na Vida do Ciberespaço.
É um grande salão de paredes cinza-escuro, em forma de cubo, dentro do qual desenvolvem-se as mais curiosas atividades. À medida que os olhos acostumam-se à penumbra do ambiente, vêem-se cenas dignas do menos respeitável dos hospícios. Um homem de uns 40 anos, vestindo tênis, calças jeans e uma berrante camisa xadrez, faz gestos no espaço, abrindo os braços como o maestro de uma orquestra invisível. Estará tendo alucinações? Não, ele treina um cãozinho cibernético, projetado numa tela por um sistema holográfico. O cãozinho obedece as ordens do treinador, vira para um lado e para outro, toma água, late e uiva, como se fosse um cãozinho de carne e osso. Esse projeto chama-se Alive (Artificial Life Interactive Vídeo Environment) e permite às pessoas interagirem com personagens virtuais através de gestos ou comandos de voz
A propósito, todos aqui serão de carne e osso? Tenho minhas dúvidas. O garçon, por exemplo, um negro de corpo atlético, cabeça totalmente raspada que coloca sobre uma mesa pilhas de caixas de pizza e latas de refrigerantes. Será ele de carne e osso, ou alguma espécie de robô? E as pizzas, do que serão? Peperone mesmo?
De repente, um piano. Um grande piano de cauda, um lindo Boesendorfer preto, começa a tocar. Mas onde está o pianista? As teclas movem-se sozinhas, executando uma Fantasia de Chopin. O pianista é um pequeno computador McIntosh ligado ao antigo piano por um sistema meio eletrônico, meio mecânico, que faz o instrumento tocar sozinho. E com grande talento.
Não se assuste, pois a execucão não é mecânica: o computador reproduz, nos mínimos detalhes, a interpretação do pianista que gravou a peça. Até a força do toque nas teclas é reproduzida com incrível exatidão.
Dentro do Cubo está funcionando o que eles chamam oficialmente de Controle da Missão: voluntários do MIT e alguns estrangeiros, agora entre os quais um brasileiro, operam seus computadores e observam o que vai rolando em quatro grandes telões, de uns cinco metros por cinco cada um, colocados a boa altura do solo.
A missão, como eles estão chamando, é uma tentativa de desbravamento semelhante às das naves Apollo. Nos anos 70, a Nasa enviou mensagens escritas e desenhadas ao espaço, na esperança de que algum dia sejam decifradas por seres alienígenas. Aqui no Cubo a diferença é que o MIT pretende enviar e receber mensagens para serem lidas por seres do próprio planeta Terra, via Internet.
Mike é o chefe do Controle da Missão. Um rapazinho ruivo, muito alegre.
- Como está seu inglês? - ele me pergunta.
- Mais ou menos.
- Ok, não comece a suar agora. Deixe pra depois.
Em poucos minutos sou nomeado um dos editores de textos (a outra parte do grupo é composta de especialistas em escrever em html, a linguagem da Internet) e sentado diante de um Pentium com um imenso monitor e discos rígidos de não sei quantos gigabytes. É a minha nave.
Minha missão é ler, uma após outra, centenas de e-mails (mensagens enviadas pela Internet) vindas de todas as partes do mundo. Toda vez que abro um e-mail tenho que escolher entre algumas opções numa régua, embaixo de minha tela, em que categoria o e-mail deve ser incluido: junk (lixo), flame (polêmica), info (pessoas passando ou pedindo informações), story (uma boa história) e gems (as grandes histórias, verdadeiras gemas que amanhã serão colocadas na Internet).
Há muito junk: gozadores, palavrões, mensagens sem sentido.
Os organizadores haviam enviado mensagens eletrônicas para milhares de usuários, convidando-os a enviar mensagens, histórias, desenhos, fotos. Muitos deles consideram essas mensagens uma inconcebível violação de direitos: nos e-mails que passam pela tela de meu computador, um cidadão atrás do outro protesta contra a invasão de sua sagrada privacidade cibernética.
Mas, além dos junk, as mensagens eletrônicas registram algo como uma profunda solidão universal: pessoas simplesmente querendo falar alguma coisa, com quem quer que seja. Alguns oferecem os endereços eletrônicos de suas páginas pessoais, acompanhados de textos quase publicitários tentando convencer usuários a visitá-las.
Uma viúva conta como a Internet ajudou-a, quando seu marido faleceu de repente. Foi na Web que ela encontrou pessoas para conversar, companheiras para rezar e todo o apoio logístico para o funeral.
Na Nova Zelândia, um grupo colocou uma câmara de tevê na cratera do vulcão Ruapehu e está mandando fotos da erupção para o Controle da Missão, atualizadas a cada hora.
Cientistas russos queixam-se do isolamento e pedem a colegas do Ocidente que entrem em contato com eles pela Internet, para troca de informações.
Um homem, vítima do Mal de Elzheimer, criou um espaço na Internet para informar pessoas que sofrem da mesma doença.
Um garotinho de 16 anos conta como a Internet ajuda seu avô de 82 anos a poder continuar lendo. Ele captura livros inteiros disponíveis na Internet, abre em seu computador e imprime no papel, em letras bem grandes, para que o avô possa ler. "Dá trabalho", comenta, "e vai muito papel, mas vale a pena ver o vovô feliz".
De Anchorage, Alasca, uma mulher envia imagens daquilo que chama de "cobertores eletrônicos". São trabalhos muito bonitos, tessituras em todas as cores e formas, parecendo vitrais. "Os cobertores cibernéticos não servem para esquentar o corpo", ela comenta, "mas servem para aquecer a alma".
De Colombo, Sri Lanka, um texto de Arthur Clarke, o famoso autor de ficção científica, fala da extinção dos gorilas e informa: restam apenas 650 montanhas de gorilas em toda a África.
No Canadá, um espaço para ajudar a encontrar crianças desaparecidas: fotos, textos, nomes, endereços, telefones, países. Um toque de muita esperança.
De algum lugar da Europa um homem envia sua página religiosa ecumênica e avisa: Jesus a conecta duas vezes por dia.
Dois casais contam que se conheceram pela Internet e participam seus casamentos.
Procuram-se parceiros sexuais, sem compromisso.
A Internet é um bom lugar para crianças? Preocupação constante.
Mensagem atrás de mensagem, o dia vai embora. A experiência é fascinante. Poucas pessoas até hoje podem ter participado de alguma coisa como essa: graças à tecnologia, poder ler a correspondência de uma quase-humanidade em algumas poucas horas.
No dia seguinte, 10 de outubro, o 10-10 vai ao ar na Internet para comemorar os dez anos do Media Lab.
Meu parceiro de trabalho, Gary, técnico de computação em Harvard, vai digitando nossas melhores mensagens na linguagem da Internet. Depois de terminada a digitação de cada mensagem, escrevemos juntos um pequeno texto justificando a escolha daquela história, e a enviamos para um computador central, onde é feita a edição definitiva e a história vai para a Internet, para o mundo.
Nossa alegria é enviar cada história e ficar esperando, diante do monitor, para vê-la entrando na Web, toda colorida, com textos e fotos.
No computador ao lado do meu, leve e solto, está Nicholas Negroponte, o grande guru da mídia cibernética no mundo. Sem paletó, gravata afrouxada, ele abre histórias em nosso "10-10", faz comentários, se diverte e se emociona.
Em seu último livro - Vida Digital- Negroponte fala que através da informática o mundo está transformando átomos e moléculas em bits digitais.
Ele tem razão.
Neste fim de tarde de dez de outubro, sentado ao seu lado diante desta maravilhosa experiência na Internet, ocorre-me uma questão. As emoções e sentimentos não são matéria física, não são compostas de moléculas e átomos. Entretanto, ali estão nossas telas, cheias de emoções e sentimentos mais do que qualquer outra coisa. Sentimentos e emoções transformados em bits. Como isso pode ter acontecido?